#101 Nelson Mandela
Nelson Rolihlahla Mandela - Mvezo, 18 de julho de 1918 e os 10 anos da primeira experiência em África.
👊🏾 Mandela’s Day
Coordenadas
Por onde ando nesse mundão?
📍 15°52'11.6"S 47°55'14.9"W
O voo era de uma hora e meia, talvez um pouco mais. Em menos de vinte minutos do embarque, um senhor sentado na poltrona à frente parecia estar tendo um infarto. O rapaz ao lado dele começou a orar fervorosamente, e logo os comissários perguntaram se havia algum médico a bordo. Contei uns seis voluntários.
A médica que atendeu o senhor estava sentada do meu lado. Fiquei feliz ao ver que era uma mulher negra, um sinal de que, aos poucos, as coisas estão melhorando no Brasil. Mas ainda falta muito.
Ele recebeu os primeiros socorros, ela garantiu que tudo ficaria bem e que chegaria ao destino sem maiores complicações. A aeronave chegou meia hora antes do esperado. Posso dizer, literalmente, que voou.
O rapaz que tinha orado pelo senhor fez questão de informar a todos que sabia que Deus o curaria e não permitiria que ele tivesse um infarto ou morresse no avião. Falava com uma convicção impressionante.
Os bombeiros embarcaram com a maca antes que saíssemos da aeronave, levaram o senhor, e então pudemos descer.
Desembarquei no Aeroporto Internacional Juscelino Kubitschek e dei de cara com cartazes e banners gigantes.
Mandela? É você?
Liguei para minha tia, avisando que o avião já tinha aterrissado, mas que não se preocupasse porque eu tinha uma exposição para visitar, ali mesmo, no aeroporto.
Aviso de Sensibilidade Este texto contém referências à história da escravidão, opressão e resistência que podem ser emocionais ou sensíveis para alguns leitores. É uma homenagem à resiliência e ao legado dos nossos ancestrais africanos.
🎧 Mandela Day
Para ouvir enquanto faz sua leitura
Música da banda escocesa Simple Minds, lançada em 1989 como parte do álbum Street Fighting Years e também fez parte da trilha sonora do álbum Nelson Mandela 70th Birthday Tribute, que celebrou o aniversário de 70 anos de Mandela com um concerto beneficente no estádio de Wembley em Londres, em 1988.
África, para mim, é a conexão entre a terra-mãe e o novo mundo que recebeu nossos ancestrais. É todo alfabeto, significados que, ainda que não sejam traduzidos, reverberam em todas as nações onde vivem afrodescendentes.
Neste texto, trago minhas experiências África adentro. Ou afora.
🔤 Alfabeto de África
África é a casa de onde saíram meus ancestrais. Não porque quiseram, mas porque foram levados além do Atlântico.
Tinham planos? Sabiam aonde iriam? Chegariam vivos?
Perguntas sem resposta.
Como baobás, resistiram, muitos viveram e deixaram herança.
Talvez quisessem nos contar histórias de vó, sentados na soleira da porta, sol se pondo e chaleira no meio da roda sendo preparada no carvão aceso. O mesmo copo com bebida quente passaria de mão em mão enquanto nos contariam como foi o dia e depois começariam a boa e velha comparação: “no meu tempo...”
Falariam do dendê que dava aquele gostinho especial no alimento. E a cor da comidinha caseira?
Contariam e cantariam histórias, ao som do djembê; diriam como se dança, numa mistura de ritmos, com a energia que só de imaginar, arrepia.
Explicariam o porquê de nos reunirmos ao redor da mesa, a razão do bocado, muitas vezes, ter que ser entregue à nossa boca pelo pai da família.
As histórias de acácias, comida de girafa, seriam narradas. Falariam das comuns e das maasai1, porque têm outra cor, são pretas, têm identidade própria. Hausas e Igbos seriam citados, povos que se espalharam pelo continente e que fizeram história – ainda fazem.
A discussão sobre o melhor Jollof rice estaria na mesa, um embate de anos, que nunca acabará.
Como foi a briga pelo Monte. Era de um, foi dado para outro. Kilimanjaro, sem poder se mover, teve que aceitar que movessem seus limites.
Todas essas histórias seriam ditas em nosso idioma, que permanece vivo, e entenderíamos – se não tivessem tirado de nós a identidade – porque não há cultura sem língua. A identidade se constrói por meio da língua e da cultura.
Eles nunca imaginaram que nossas mulheres virariam mucamas e que seus filhos seriam chamados nagôs, afinal, em África eram Oba.
O povo da resistência se isolaria nos quilombos após a fuga, esqueceria que no meio deles habitavam rainhas, matriarcas que declaravam: “voltemos às raízes” – o Sankofa nosso de cada dia.
Ainda assim, lutaram para manter as tradições; mas essas foram tiradas, demonizadas, neutralizadas. Algumas apagadas, outras esquecidas.
Não fosse a união deles do outro lado do Atlântico, o senso de comunidade, o cuidado, nem eu estaria aqui para imaginar essa história.
Manter os valores dos nossos ancestrais custou a vida de muitos e ainda hoje morremos por isso. Sangramos.
Aqueles que resistiram, entre Wolof, Xhosas, Yorubas e Zulus, deixaram suas lições, seus aprendizados. Herdamos suas cores, suas formas, sua arte e lutamos como eles, valentes de guerra.
Por essa razão, estamos aqui, escrevendo e reescrevendo a história preta, aquela que atravessou o Atlântico, enriqueceu o novo mundo e ainda nos orgulha.
No Dia de Mandela, os comentários são gratuitos, porém valiosos!
📚 Professor Chiquinho
E aqui entra Nelson Mandela, uma figura que se entrelaça com minhas lembranças de infância. Em 1986, nas aulas de história do professor Chiquinho, uma figura que eu só perceberia a genialidade e importância anos mais tarde, aprendi sobre o apartheid2; naquela época, eu não entendia a importância desse tema. Para mim, era apenas mais uma lição distante e desconectada da minha realidade. Mas Chiquinho, com sua paixão e dedicação, plantou em mim uma semente de consciência.
Mandela não é apenas um ícone da resistência e da luta pela liberdade na África do Sul; ele é um símbolo de resiliência, como os baobás que desafiam tempestades. Ele nos mostrou que a luta pela liberdade e igualdade não é uma simples batalha, mas uma jornada de coragem e sacrifício. Arrancou a justiça das garras da opressão, transformando dor em propósito e sofrimento em força.
Mandela, com sua incansável busca por justiça, encarnou o espírito de todos que resistiram e lutaram. Seu legado não é apenas um tesouro para a África do Sul, mas um farol para o mundo inteiro. Ele provou que, mesmo após décadas de opressão, a esperança e a dignidade podem renascer. Seu impacto atravessa fronteiras, ecoando a resistência e a força de todos os nossos ancestrais. Assim como eles, Mandela nos mostrou que, com união e determinação, podemos transformar o mundo ao nosso redor.
Então, enquanto celebramos o Dia de Mandela, refletimos sobre nossa história, nossas lutas e vitórias, e nos comprometemos a continuar sua obra, deixar seu legado e o nosso.
📍 Marco
Hoje, 18 de julho de 2024, no Mandela Day, celebro dez anos desde minha primeira visita ao continente africano. A data é significativa, marcada não por coincidência ou planejamento, mas por intencionalidade da vida e, quem sabe, pelo desejo dos meus ancestrais. Nossa terra nos chama de volta ao lar, e sinto-me grata por atender a esse chamado.
Se quiser ler um pouquinho mais sobre o dia que pisei em solo africano pela primeira vez:
🌍 Glossário
Ancestrais: Antepassados de uma pessoa ou grupo que têm uma importância cultural e histórica significativa.
Baobás: Árvores majestosas nativas da África, conhecidas por seus troncos largos e longevidade.
Chaleira: Recipiente usado para ferver água, comum em muitas culturas para preparar bebidas quentes.
Dendê: Óleo extraído do fruto da palmeira, amplamente utilizado na culinária africana e brasileira.
Energia: Força vital ou vigor que impulsiona movimentos, ações e tradições culturais.
Família: Grupo de pessoas relacionadas por sangue, casamento ou adoção, fundamental na estrutura social africana.
Girafas: Mamíferos africanos de pescoço longo, conhecidos por sua altura e por se alimentarem das folhas das acácias.
Hausas: Grupo étnico majoritário na África Ocidental, especialmente no norte da Nigéria, com uma rica tradição cultural.
Igbos: Grupo étnico nigeriano, predominante no sudeste da Nigéria, conhecido por sua língua e cultura vibrantes.
Jollof rice: Prato popular da África Ocidental, feito de arroz cozido com tomates, cebolas e várias especiarias.
Kilimanjaro: Montanha mais alta da África, localizada na Tanzânia, conhecida por seu pico coberto de neve. Há uma história popular que sugere que o Monte Kilimanjaro foi "dado" à Tanzânia pelo governo do Quênia.
Língua: Sistema de comunicação verbal usado por uma comunidade, essencial para a identidade e cultura.
Mucama: Termo histórico para mulher escravizada, doméstica, usado no Brasil colonial.
Nagôs: Termo usado no Brasil para se referir a africanos de origem iorubá.
Oba: Título de realeza entre os iorubás, significando "rei".
Povo: Comunidade ou grupo de pessoas que compartilham uma cultura, língua ou história comum.
Quilombos: Os quilombos eram comunidades estabelecidas por escravizados africanos fugitivos no Brasil, durante o período colonial e imperial. Esses refúgios serviam como locais de resistência contra a opressão e a escravidão, onde os escravizados fugidos podiam viver em liberdade e recriar elementos de suas culturas africanas.
Raízes: Origem ou fonte de uma pessoa, grupo ou cultura, simbolizando a conexão com o passado.
Sankofa: Símbolo africano da importância de aprender com o passado para construir o futuro.
Tradição: Costumes e práticas culturais transmitidas de geração em geração.
União: Ato de juntar ou combinar pessoas ou grupos para um propósito comum, essencial para a coesão social.
Valores: Princípios ou padrões de comportamento considerados importantes em uma cultura ou comunidade.
Wolof: Grupo étnico da África Ocidental e sua língua, predominantemente falada no Senegal.
Xhosas: Grupo étnico da África do Sul, conhecido por sua língua única e rica herança cultural.
Yorubas: Grande grupo étnico da Nigéria, com uma cultura rica e influente, famosa por suas tradições religiosas e artísticas.
Zulus: Grupo étnico da África do Sul, famoso por sua história de resistência e cultura guerreira.
Para compartilhar a riqueza cultural da terra dos meus ancestrais compilei um glossário de termos que capturam a essência da herança africana. Cada palavra é uma janela para a alma do continente, desde as imponentes árvores baobás, que simbolizam resiliência, até o termo Sankofa, que nos lembra da importância de aprender com o passado para construir o futuro.
Mandela, com sua incansável busca por justiça e igualdade, personifica o espírito de resistência que encontrei em cada canto da África e é essa jornada que cada termo deste glossário procura honrar.
Que ele sirva como uma ponte para a compreensão e a valorização do rico patrimônio cultural da África e que possamos nos inspirar na jornada de Mandela.
Obrigada por ler até aqui. Até a próxima edição!
As girafas Maasai são uma subespécie de girafa que habita a África Oriental, particularmente no Quênia e na Tanzânia, conhecidas por suas manchas irregulares de cor marrom escuro ou laranja e suas pernas longas.
Sistema de segregação racial institucionalizada na África do Sul de 1948 a 1994, que separava e discriminava a população com base em raça.
nelson mandela é uma das figuras mais interessantes da história mundial. deve ser uma experiência incrível estar na áfrica do sul no mandela day.