Este texto faz parte da série Cafés pelo Mundo, que será publicada ao longo do mês de fevereiro. Em cada Ensaio, compartilho experiências e reflexões vividas em diferentes lugares, explorando não apenas o sabor, mas as histórias, o ambiente e as conexões que esses espaços proporcionam.
📍 Escrevo do sudeste da Inglaterra: um lugarzinho para voltar sempre que possível. Lembrando que, por aqui, os cafés são solúveis.
Acabou de chegar?
Leia os dois primeiros textos da série:
Um Café em Nairobi
A recepção do hotel interfonou para o meu quarto:
Tem alguém aqui querendo falar com a senhora.
Ninguém sabia onde eu estava hospedada. Ninguém, a não ser um dos motoristas do Keffa, que me trouxe de volta de Nakuru dois dias antes.
Desci, imaginando quem seria.
Sentado no saguão, estava Keffa, o guia de Nairobi.
Não esperava por ele, afinal, já tinha me despedido três dias antes, quando fui para o trabalho voluntário no Vale do Rift. Naquela manhã eu só queria descansar, economizar energia (e dinheiro!) para a jornada até a Tanzânia no dia seguinte.
Mas lá estava ele, com seu sorriso acolhedor e um convite inesperado:
Vamos tomar um café?
O convite era irrecusável, porque a única coisa que faltava no meu roteiro turístico era o café na cafeteria famosinha da África Oriental.
🎧 Buga
Para ouvir enquanto faz sua leitura
Para acompanhar esta edição, escolhi a música que embalou minha temporada no Quênia. É a trilha sonora perfeita para reviver essas memórias.
Um Guia (Quase) Inacessível
Minha história com Keffa começou de um jeito curioso. Cheguei em Nairobi numa sexta-feira à tarde, após um voo atrasado vindo da Etiópia. Como ele não tinha mais agenda para aquele dia, consegui um outro guia para me levar do aeroporto ao santuário das girafas. Nós tentamos incluir o orfanato dos elefantes, mas só havia vagas dali a dois meses. Paciência. Seguimos o plano.
O safari estava marcado para o dia seguinte com Keffa. No entanto, ele não apareceu. Em seu lugar, surgiu Ronald, seu primo.
Eu havia escolhido o Keffa por indicação de uma amiga que fez o tour de Nairobi com ele. Confesso que fiquei reticente ao ver sua foto de perfil: estava ao lado do ex-presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton. Pensei imediatamente: “Esse cara deve ser caro... e elitista.” Tudo o que eu queria era um guia seguro para o meu safari, não um paparico de celebridade.
Ele não tinha me avisado que não estaria presente. Só descobri quando Ronald apareceu na porta do hotel. A cada parada, ele atendia o telefone e dizia:
É o Keffa, só conferindo como estão as coisas.
Para minha surpresa, Ronald se revelou um excelente guia. Engraçado, atencioso e com um conhecimento profundo sobre a cidade. E além disso, me livrou de um perrengue com os Maasais1 – uma história que ainda vou contar por aqui.


No domingo, Keffa finalmente apareceu, com um sorriso no rosto. Não consegui esconder o tom de reclamação:
Poxa, Keffa, fiquei te esperando ontem.
Ele explicou, com tranquilidade, que por conta de sua religião não trabalha aos sábados. Não estava chateada, apenas gostaria de ter sido informada. Tudo teria ficado bem se ele tivesse me contado antes. Mas, ao vê-lo sorrir e se desculpar, percebi que não valia a pena guardar ressentimento.
Um Roteiro Sob Medida e a Vida Local
Depois desse primeiro encontro, passei a gostar de Keffa. Já tinha feito quase tudo em Nairobi em dois dias e pedi para ele mudar o roteiro. Queria um domingo “local”, sem aquela vibe turística. Ele aceitou prontamente, e me levou para uma fazenda de café em Kiambu, uma hora de Nairobi, e depois para pedalar na floresta. Enquanto eu tentava não cair da bicicleta, vi Keffa conversando com um casal bem jovem. Ele os aconselhava sobre casamento, estudo e trabalho. Me aproximei e fiquei surpresa com o carinho e respeito que emanava daquela conversa. Eles nunca tinham se visto antes.
Ao longo do dia, passamos por feiras de artesanato e pelo Museu Nacional, onde ele me deixou com um guia local, voltando para me buscar depois. O tempo todo, percebi que Keffa não era só um guia. Era um mentor, um amigo e alguém que se importava.
O Café de Milhões
Dois dias depois, eu estava pronta para partir para a Tanzânia. Havia dito a Keffa que queria descansar no último dia. Não esperava vê-lo novamente, até o momento em que ele apareceu no hotel para se despedir e me convidou para um café.
Fomos até a Java House, um clássico de Nairobi. Eu não estava preparada para a enxurrada de emoções que aquele café traria. Contei causos de viagem, chorei ao lembrar de Nakuru e da partida do meu filho dois anos antes. Sorri com a expectativa pela Tanzânia. Compartilhávamos o mesmo amor pelo trabalho voluntário e a esperança na humanidade.
E, então, ele começou a falar. O amor pela família: a devoção aos pais, irmãos, sobrinhos, filhos e esposa. Falou com orgulho do trabalho duro para sustentá-los, como superou o alcoolismo na adolescência e do apoio inabalável da esposa, que esteve ao seu lado o tempo todo.
Em algumas partes do Quênia, as famílias vivem em vilarejos, e o tio de Keffa sabia que, se ele permanecesse lá, seu futuro estaria comprometido. Então, decidiu levá-lo para "a cidade" – Nairobi. Keffa me confessou que, no fundo, sentia que o tio estava desistindo dele, mas aquela mudança foi sua salvação.
Com o apoio da então namorada, largou a bebida, envolveu-se com uma comunidade religiosa e, não muito tempo depois, casou-se. Teve dois filhos e começou a trabalhar como guia turístico na cidade. Comprou sua primeira van, depois a segunda, a terceira... No total, eram seis vans. Ele trouxe toda a família para trabalhar na agência de turismo.
Quando falava da esposa, seus olhos brilhavam. Havia amor, gratidão e um orgulho genuíno pelas conquistas dela trabalhando para o governo do Quênia. Keffa não poupava elogios, e eu fiquei emocionada com a forma como ele valorizava a parceria deles, as dificuldades que enfrentaram e as vitórias que agora colhiam juntos.
Ele também trouxe a irmã do vilarejo para estudar na cidade. Para isso, precisou abrir mão de sua pós-graduação.
Quando as coisas melhorarem, eu volto – disse ele, com um sorriso confiante.
Aquele café foi uma aula de humanidade. Não apenas pelas histórias, mas pela forma como ele as contou – com vulnerabilidade, coragem e um sorriso que não desaparecia do rosto.
O café na Java House foi um momento de despedida, e também um convite para enxergar a vida com mais simplicidade, amor e gratidão.
O melhor café de Nairobi não estava na xícara. Estava na história que ouvi. Ubuntu2.


Meu clichê do dia
Que talvez nem seja tão clichê assim.
Enquanto ouvia Keffa contar sua história, pensei no conceito de Ubuntu – "Eu sou porque nós somos." Sua trajetória refletia essa filosofia de forma pura e profunda. Ele não se tornou quem é sozinho. Foi salvo pelo tio, apoiado pela esposa, retribuiu ajudando a família e escolheu crescer com os seus. Sua vida não era sobre sucesso individual, mas o impacto que podia gerar em quem estava ao seu redor. Em cada escolha, havia um senso de pertencimento, responsabilidade e generosidade.
Naquele café, percebi que Ubuntu além de um conceito africano – é uma maneira de existir no mundo com mais empatia, conexão e propósito.
2025
Mandei uma mensagem para o Keffa hoje, enquanto escrevia, para saber como estão as coisas por lá. A foto com o ex-presidente ainda está no perfil do WhatsApp (rs).
Uma de suas irmãs se formou como enfermeira, e a outra está no último ano do ensino médio.
Sempre que alguém me pede indicação de guia em Nairobi, recomendo o Keffa. Ele continua fazendo a diferença.
☕️ Até a próxima quarta-feira, de um novo destino.
Os maasais são um povo tradicional do Quênia e da Tanzânia, conhecidos por suas vestes coloridas, seus rituais ancestrais e uma conexão profunda com a terra e o gado.
Ubuntu é um conceito africano que significa "Eu sou porque nós somos", enfatizando a conexão, a empatia e a importância da coletividade.
um cafezinho e uma boa história são imbatíveis! que grande sujeito parece ser keffa. deu até vontade de conhecer nairóbi, um destino no qual nunca tinha pensado.